#6 - Vulgaridade

🌷 Leia – Florescer Interior #006

VI.

Irritantemente vulgar. Dentre todas as Ă©pocas possĂ­veis, habitar justamente a da ascensĂŁo digital. Esta disputa banal em uma dança regida pelo algoritmo. A humilhação de colocar tempo e energia para se tornar substituĂ­vel. Seres humanos descartáveis. Tanto existem, como nĂŁo existem. Basta um descuido, e logo outro toma-lhe o lugar. NĂŁo que isso seja diferente comigo. Essa tambĂ©m Ă© minha culpa – minha tĂŁo irritante culpa – eu assumo. Faço parte da dança. Quantas vezes nĂŁo adentro a sua caixa de e-mail sem pedir licença, como mácula? Tentáculos expostos e palavras rascantes para lhe chamar a atenção. TambĂ©m há vezes que nĂŁo apareço, mesmo que prometido. Irritantemente irresponsável. Há em mim a tendĂŞncia de interromper projetos, tĂŁo natural quanto um piscar de olhos. Falo isso de coração aberto, com a ferida exposta. Mas já deixo avisado! Vejo com espanto quem concebe irredutĂ­vel a execução do começo, do meio e do fim, a tal ponto que meus ossos doem. Como nĂŁo temer amadurecer tanto a ponto de apodrecer? NĂŁo acho, igualmente, que valha a pena esta exposição que aqui expresso. A faço assim mesmo – faço, porque mereço. Em paralelo, estabeleço por hobby colocar a minha insignificância sob perspectiva – e confirmá-la todos os dias. Ontem mesmo, por exemplo, me perdi explorando sobre como vivia a espĂ©cie humana no perĂ­odo PaleolĂ­tico. Idade da Pedra Lascada, se assim preferir dizer. Esse Ă© o perĂ­odo entre 2,6 milhões de anos atrás atĂ©, aproximadamente, 10 mil anos antes de Cristo. NĂŁo estou aqui para ensinar nada, Ă© importante deixar isso claro. Mas Ă© meio dia e enquanto espero o almoço que pedi no iFood, penso – com fascĂ­nio – nos nossos ancestrais sobreviventes daquela era glacial. NĂ´mades, com pouquĂ­ssima oferta de alimento, hibernando em cavernas profundas para fugir de temperaturas negativas. NĂŁo havia fogo disponĂ­vel por escolha – nĂłs nĂŁo sabĂ­amos produzi-lo ainda. Tampouco sei eu agora, por talento prĂłprio. Mas no PaleolĂ­tico, para obter fogo era preciso esperar o cair de um raio ou uma erupção vulcânica. Esperar, coisa que tambĂ©m pouco sei – e sei cada vez menos. Ainda assim, Ă  Ă©poca, o fogo era o determinante da sobrevivĂŞncia – e saber preservá-lo por mais tempo era uma verdadeira arte. Uma arte de vida ou morte! Puxo em minha memĂłria a Ăşltima vez que tentei acender uma vela. NĂŁo porque estivesse sem luz, nada disso. Por acaso encontrei uma vela na gaveta da cozinha e queria acendĂŞ-la. Uma vela estĂşpida dessas de supermercado. Para a tarefa, escolhi o fĂłsforo. Risquei-o. NĂŁo acendeu de primeira, nem de segunda. SĂł na terceira! Concentrei-me em deixar a chama prĂłxima ao pavio. Segurei o máximo que pude. A vela permaneceu apagada – e eu consegui me queimar. Já estou irritada novamente, tal como no dia. Se vocĂŞ riu, vocĂŞ fez certo! Errada estou eu, com essa irritação – por que ela se recusa a cessar? Há outra coisa que tambĂ©m nĂŁo cessa: a falta do essencial. O fogo nos olhos para alĂ©m da tela. NĂŁo se engane, essa Ă© apenas uma confissĂŁo para amenizar a vulgaridade temporal a que me encontro. Tenho horror de perder para velas, tanto quanto de perder para o algoritmo – e isso me irrita.

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"Eu medito sem palavras e sobre o nada. 

O que me atrapalha a vida Ă© escrever."

Clarice Lispector

Recorte da obra Lady With a Fly on her Shoulder, de Frans van der Mijn (1596).

C O N V I T E

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